domingo, 15 de junho de 2008

Personalidade – Teoria Existencial

Em verdade, essa não chega a ser uma “Teoria da Personalidade” de fato, e sim um segmento da filosofia que se dedica ao conhecimento do homem.

Por isso, fazendo uma adaptação, vou abordar alguns de seus conceitos que se mostraram mais úteis na elobaração de uma personalidade para jogos de RPG. Conceitos como a Existência e suas Condições, Abertura, Angústia e Desespero.

Esse artigo faz parte de uma série sobre as Teorias da Personalidade e de como usá-las em jogos de RPG. Leia o primeiro artigo, Personalidade, para maiores esclarecimentos.

O Ser e as condições da existência
Essa teoria usa o nome “Ser” para definir um indívíduo. A palavra “Ser”, aqui, é usada como verbo e não como substantivo. “Ser” sendo substantivo passa a idéia de criatura, de seres vivos, mas não é essa a idéia. Esse “Ser” deve ser entendido como: o que esse indivíduo “É”, de como ele está “sendo” em sua existência.

Existência se remete a existir fisicamente, estar em algum lugar no tempo e no espaço. Significa estar aqui, agora, com outra pessoa ou sozinho, se relacionando ou ignorando as pessoas ao seu redor.

Todo Ser está submetido a certas condições para existir e ninguém está livre delas. Mesmo sendo as mesmas para todos, o que muda é a maneira pessoal e única com que cada um de nós lida com elas. Nesse contexto, seria até mais apropriado dizer que a diferença está naquilo que você se permite Ser. As condições da existência são:

Ser para si mesmo: Essa condição define qual o relacionamento que você mantém consigo mesmo. Quais são os sentimentos que você tem para consigo mesmo e quais deles você permite mostrar. Quais pensamentos e sentimentos você admite para si mesmo que possui. Aqui entram questões como: se você se gosta, se você se odeia, se você se acha magra, se você se acha atraente, se você se acha burro, se você se acha capaz, se você se pune, e por ai vai.

Ser com o outro: Essa condição define qual o relacionamento que você mantém com as pessoas que estão ao seu redor, sejam elas seus pais, familiares, amigos, colegas, estranhos na rua, o apresentador da televisão, ou mesmo alguém que está apenas no seu imaginário. Essa relação pode ser amistosa, agradável, conflituosa, de proximidade, a distância, te trazer alegria, aceitação, raiva, rancor, prazer, orgulho. Perceba que mesmo que você seja um ermitão e viva numa ilha deserta, a sua condição existencial de ser com o outro é o completo afastamento.

Ser no mundo: Essa condição define qual o relacionamento que você mantém com o mundo ao seu redor. Essa condição diz do quanto você aproveita e explora os lugares e se interessa pelos acontecimentos da sua cidade, região ou do mundo. Se você vive isolado num apartamento e pede pizza todo noite apenas para não ter que sair, se você conhece e anda freqüentemente por todo o seu bairro, se você se aprofunda nos conhecimentos produzidos e que estão no mundo, se você viaja constantemente e conhece vários países.

Ser para a morte: Essa condição define qual o relacionamento que você mantém com o grande desconhecido, a morte. A morte é a nossa grande antítese, o não-ser. Como você lida com a idéia de que um dia, mesmo que leve décadas ou séculos(!), você não irá mais existir? Você evita pensar na morte a todo custo, nem vai a velórios para evitar ver os mortos. Ou, num outro extremo, aventura-se em coisas perigosas, que podem te deixar muito perto dela e te permite até mesmo sentir um pouco o que é estar diante dela, como saltar de pára-quedas ou mergulhar no mar junto com tubarões ferozes.

Abertura
Para essa teoria o Ser deve ser pensado como sendo uma clareira. As experiências conhecidas e vividas estão na luz, facilmente visíveis; enquanto que aquilo que não foi vivido ou experimentado está na escuridão. Abertura é o quanto o Ser permite que as coisas surjam na clareira de sua existência. Afinal, estamos no mundo, rodeados por pessoas, tendo de viver com elas e com nós mesmos, sabendo sempre que num certo momento iremos morrer e deixar de existir. Todas essas coisas nos cercam. Abertura é o quanto você permite que elas adentrem a sua existência e você se relacione/interaja com elas.

Como isso funciona na prática?
Defina para o seu personagem qual o grau de abertura que ele permite para cada aspecto dentro das suas condições existenciais. Abaixo, irei exemplificar como isso pode ser feito, e, mais adiante, de como isso pode funcionar mecanicamente dentro do jogo.

Condições do personagem
A princípio, pense em cada uma das condições existenciais isoladamente e defina como o seu personagem lida com os aspectos que às envolvem. Isso pode ser feito de uma maneira abrangente ou detalhada, fica a cargo do jogador decidir o quão complexo quer tornar o personagem.

Ser para si mesmo
De forma abrangente, você pode dizer que está bem consigo mesmo e que reconhece em você valores positivos como: coragem, humildade, bom humor e esperteza.
De forma mais detalhada, você pode especificar que admira seu bom humor e inteligência, que sabe que tem defeitos como ser ranzinza e irônico às vezes. Que, de manhã está mais alegre e confiante e que, conforme o dia vai acabando, sente-se mais triste.

Ser para o outro
De forma abrangente, você pode dizer que o seu personagem procura ser bem cordial com as pessoas, trata a todos como iguais e que reage com grosseria quando desrespeitado. Ou dizer que o personagem é irônico e grosso, que não respeita ninguém a não ser quando a pessoa prove ter valor.
De forma mais detalhada você pode definir como o seu personagem lida com cada uma das pessoas que estão mais próximas a ele. Comece com os personagens dos outros jogadores e estenda para NPCs mais próximos, como contatos, aliados, dependentes, familiares e amigos. Defina também como você lida com um estranho, para ter uma idéia de como reagir com um desconhecido.
Como exemplo: Marcos é meu amigo, com ele posso ser descontraído e fazer piadas sobre o seu time do coração que ele não vai reagir mal, também é a ele que recorro quando brigo com minha noiva, sei que é paciente e está sempre disposto a me ouvir. Já com a Marta, colega do trabalho, me mantenho distante, ela é sempre rabugenta e mal-humorada, não a suporto.

Ser para o mundo
De forma abrangente, você pode dizer que o seu personagem raramente sai de sua cidade, que os seus interesses são esportes, música para se dançar, bons restaurantes à noite e ir à praia aos fins de semana.
De forma mais detalhada você pode dizer como lida com os ambientes mais comum, como sua casa, local de trabalho e a cidade onde mora. Pode definir uma lista de interesses, como área de atuação profissional, de lazer, hobbies e conhecimentos.
Como exemplo: Detesto meu apartamento, ele é pequeno e úmido, vou lá apenas para dormir. Por outro lado, adoro andar pelas ruas da cidade, sentindo o calor do sol, ver as pessoas, as lojas e prédios. Só me dá arrepios passar pela rua nove, onde tem aquele casarão antigo, onde relatam ter morrido uma família inteira vítima de um psicopata. Lembro de ter lido isso no jornal local, meu preferido, nele fico informado sobre as notícias políticas e policiais, só não leio a seção de variedades.

Ser para a morte
De forma abrangente, você pode simplesmente dizer que o seu personagem abomina a morte e os mortos e faz de tudo para estar longe dela. Ou que lida com ela numa boa, vai a enterros, assisti CSI, mas que não quer morrer tão cedo.
De forma mais detalhada, você pode especificar todos os momentos que o seu personagem esteve diante da morte e a maneira como lidou com cada uma delas. Estar diante da morte pode ser desde ver um cadáver na televisão, ir a um funeral, presenciar a morte de um parente ou amigo, ter uma profissão de risco como policial ou bombeiro, ter um hobby que contenha riscos como alpinista ou mergulhador.

Abertura, Angústia e Desespero
Primeiro, vamos entender como irá funcionar o conceito de Abertura.

Todos os aspectos que você definiu quando escreveu sobre suas condições de existência, fazem parte da sua existência e mostram como você lida com elas, independente de serem boas ou ruins. Tudo o que foi previsto faz parte da sua abertura e o que não foi previsto pode gerar angústia.

Ao definir, por exemplo, que sente orgulho de si mesmo, isso significa, em outras palavras, que você possui abertura para o sentimento de orgulho, que está habituado a ele e que o conhece bem. Se você experimentar o sentimento de decepção, algo ao qual você não tem abertura, isso irá lhe causar estranheza, essa estranheza é a angústia.

Estar diante de algo para o qual o seu personagem não possui abertura gera angústia. Essa angústia pode surgir dentro de qualquer uma das condições existenciais. A angústia pode surgir ao experimentar um sentimento novo em relação a si mesmo. A angústia pode surgir ao estar diante de uma pessoa desconhecida ou quando uma pessoa conhecida reage de uma maneira totalmente diferente da qual você está acostumado. A angústia pode surgir ao estar numa cidade desconhecida ou diante de um prática que você desconhece totalmente. A angústia surge quando diante de uma pessoa morta quando você não está preparado para isso.

Angústia é um sentimento de estranheza, algo que toma todo o seu Ser e o impede de agir e pensar com clareza. Angústia é estar diante da possibilidade de se viver algo novo e diferente, algo que anteriormente era totalmente desconhecido.

Qualquer experiência que não tenha sido vivida anteriormente pelo personagem pode lhe causar angústia, algumas em maior outras em menor grau. Como exemplo: uma pessoa que se considera amiga e atenciosa para com os demais, de repente se mostra rude e grosseira, isso provoca angústia, essa percepção de que não se é aquilo que se imaginava ser, de sentir algo que não tinha sentido antes. Outro exemplo: a pessoa, físico formado, sabe que a lei da gravidade se aplica a tudo e a todos, então ela se depara com objetos voando ao seu redor de um lado para o outro sem uma explicação plausível, isso gera angústia.

Em termos mecânicos, jogadores e mestres podem definir como a angústia irá afetar o seu personagem. Ela pode ser apenas um elemento da interpretação, onde o personagem decide como reagir. Ou regras podem ser criadas, impondo testes de reação, de resistência, e gerando penalidades caso o personagem falhe.

Quando o personagem é exposto rápida e sucessivamente há vários elementos que lhe causem angústia, ele pode entrar em desespero. O desespero também surge quando diante da morte ou qualquer elemento que faça o personagem experimentar a possibilidade de morrer.

Desespero é quando o personagem perde todo o seu referencial. É como se ele tivesse saído de sua própria clareira e entrado totalmente na escuridão do desconhecido. Estar desesperado é perder a razão, perder o rumo. Não confunda com loucura. Estar “louco” é ter referências diferentes das dos outros, como, por exemplo, achar que é Papai Noel. Enquanto estar desesperado é perder totalmente as referências. Uma pessoa desesperada é capaz de fazer qualquer coisa para tentar entender o que está se passando com ela ou ao seu redor, tudo é válido para se voltar a clareira, para voltar a ter referências e se saber o que são e como são as pessoas, o mundo e você mesmo.

Mestres e jogadores podem definir, em termos mecânicos, se haverão penalidades para um personagem desesperado ou se esse estado será apenas interpretado livremente pelo jogador. Vários sistemas possuem regras que podem ser facilmente convertidas para contemplar esse estado.

Definir as condições de sua existência irá formar a estrutura necessária para que os conceitos de angústia e desespero possam ser usados no seu personagem. Logo, enquanto as condições existenciais te dão base para formar uma personalidade, elas também dão contorno para que uma regra sobre angústia e desespero possa ser criada e usada em seus jogos.

Detalhe
Outro conceito importante dessa teoria filosófica é a questão da responsabilidade. Nessa teoria, o homem é responsável pela própria vida e com tudo o que lhe acontece. Para tanto, é preciso estar engajado num projeto de vida. Planejar a própria vida e engajar-se para que seus planos dêem certo é uma das principais responsabilidades do homem.

Nesse artigo, descrevi em detalhes sobre como motivar e traçar metas e objetivos para um personagem. Use-o como complemento, se desejar, para interpretar seu personagem.

Uso em Sistemas e Cenários
Os temas dessa teoria, que tratam da Angústia e do Desespero, assim como a ênfase em vários detalhes da existência do personagem como pensar na própria morte, a tornam mais apropriada para jogos de horror como Call of Cthulhu, Gurps Horror e para crônicas no Mundo das Trevas da White Wolf.

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